quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

I Encontro Texto ilustrativo- O !Ratio Studiorum e a missão no brasil

O Ratio Studiorium e a missão no Brasil


Karen Fernanda da Silva Bortoloti
Mestranda UNESP/ Franca
Agência financiadora: FAPESP


Resumo: O método de ensino intitulado Ratio Studiorium, elaborado pelos jesuítas no final do século XVI expandiu-se rapidamente por toda a Europa e regiões do Novo Mundo em fase de ocupação. Tendo como principal objetivo levar a fé católica aos povos que habitavam estes territórios, os jesuítas utilizaram-se deste método para catequizar, servindo duplamente aos interesses do colonizar e da Igreja contra-reformista. O Brasil enquadrava-se neste contexto, sendo terreno fértil para a implantação deste “projeto”. Coube-nos analisar a proposta pedagógica dos jesuítas e de que maneira a “experiência brasileira” contribuiu para a elaboração definitiva do Ratio Studiorium
Palavras-chave: Ratio Studiorium, Brasil, jesuítas

Abstract: The titled method of teaching Ratio Studiorium was elaborated by the Jesuits at the end of the 16th century and expanded itself quickly for all Europe and regions of the New World in colonization phase. Having as the main goal spread the catholic faith to the people who inhabited these territories the Jesuits utilized this method to catechize, serving as a duplycatly interesting: colonizing and the against-reformist Church. Brazil was inserted in this context, being a fertile land to the implantation of this “project”. We were in charge of analyzing the pedagogical purpose of the Jesuits and what manner the “Brazilian experience” contributed to the definitive elaboration of the Ratio Studiorium.
Keywords: Ratio Studiorium, Brazil, Jesuit

Currículo Humanista: base comum

O Ratio Studiorium fora pensado para ordenar as instituições de ensino de uma única maneira, com vistas a permitir uma formação uniforme a todos que freqüentassem os colégios da Ordem Jesuítica em qualquer lugar do mundo. Exceções foram necessárias para que as diversidades mais “berrantes” de algumas localidades fossem minimamente respeitadas.
Assim, o Ratio Studiorium seria a base comum que serviria de suporte do trabalho dos jesuítas. Em todos os lugares essas normas deveriam ser seguidas da maneira como estavam prescritas no documento, em coerência com os preceitos e os interesses da Igreja Católica.
A elaboração de regras pelos colégios das diferentes localidades, que trabalhavam com realidades distintas, serviu para que os pontos positivos de cada uma delas fosse aproveitado para a elaboração final do documento. Até a redação definitiva muitas correspondências foram trocadas e muitas críticas, experimentações e correções foram feitas.
O documento final publicado em 1599, intitulado Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, compõem-se de trinta conjuntos de regras que foram analisadas em nossa pesquisa. Trata-se de um detalhado manual com a indicação da responsabilidade, do desempenho, da subordinação e do relacionamento dos membros da hierarquia, dos professores e dos alunos. Além de ser também um manual de organização e administração escolar. A metodologia é bastante pormenorizada, com a sugestão de processos didáticos para a aquisição de conhecimento e incentivo pedagógico para assegurar e consolidar a formação do aluno.
A rápida expansão dos colégios fez surgir questões que precisavam ser solucionadas da melhor maneira possível.

Em geral, o plano de estudos, elaborado em Messina e desenvolvido no Colégio romano, constituíra a primeira norma orientadora das novas funções. A diversidade dos costumes regionais e a variedade dos homens não tardaram a introduzir-lhes alterações mais ou menos profundas. Para estabilizar o governo dos colégios adotou-se, durante algum tempo, o alvitre das visitas de Comissários Gerais, diríamos hoje de inspetores de ensino, incumbidos de manter, quando possível, a uniformidade de estrutura e desenvolver a eficiência da obra educativa da ordem, Durante quinze anos desincumbiu-se desta tarefa o infatigável P. Nadal[1].

Tais visitações também ocorreram no Brasil, porém aqui o caráter delas eram, a nosso ver, um pouco mais rígido e voltado para a catequização.
Alguns caracteres das casas e colégios precisavam assumir as mesmas formas, tais como a administração e a metodologia, que foram as duas que se mantiveram mais inflexíveis durante todo o desenvolvimento dos trabalhos da Companhia. Porém, podemos destacar que desde os primeiro momentos em que a Ordem enveredou-se pelo caminho educacional, as casas e colégios apresentaram certos traços comuns, o que não poderia ser diferente, uma vez que os jesuítas deveriam trabalhar sempre de maneira uniforme com vistas à universalização de seus resultados.
Retornando ao currículo comum, é necessária uma breve caracterização dos pontos que não dizem respeito diretamente ao currículo, mas que não deixaram de ser comuns e sofreram poucas, ou nenhuma, modificação nos diferentes locais. O plano de estudos dos jesuítas em suas regras gerais ditava qual o comportamento mais aconselhável ao Provincial, ao Reitor, ao Prefeito de estudos, aos Professores e até aos funcionários menos graduados para o bom funcionamento do estabelecimento e resultados positivos da educação[2].
Além de ditar o comportamento dos membros da hierarquia educacional jesuítica, esse documento apontava o que os mestres deveriam ensinar e o modo como os assuntos predeterminados deveriam ser abordados. Portanto, o Ratio não era apenas um programa, mas um rigoroso método de ensino.
Administrativamente a Companhia dividia-se em Províncias que englobavam várias casas e colégios e poderia ocupar território de uma nação ou apenas parte dele. O Provincial era o principal chefe dessas unidades, porém era o Reitor a figura central dos colégios. A principal função do Provincial era zelar pelo bom andamento do trabalho dos missionários, cuidando o Reitor mais diretamente das atividades relacionadas à educação e à catequese. Este era auxiliado pelo Prefeito de Estudos, seu braço direito que acompanhava de perto toda a vida escolar. Assim, fica demonstrado, minimamente, a hierarquia administrativa das instituições de ensino da Ordem.

A Companhia dedica-se à obra dos colégios e universidade, afim de que nestes estabelecimentos melhor se formem os nossos estudantes no saber e em tudo quanto pode contribuir para o auxílio das almas e por sua vez comuniquem ao próximo o que aprenderem. Abaixo, portanto, do zelo pela formação das sólidas virtudes religiosas, que é o principal, procure o Reitor, como ponto de máxima importância, que, com a graça de Deus, se alcance o fim que teve em mira a Companhia ao aceitar colégios[3].

De modo geral, o programa educacional lançado pela Companhia de Jesus dividia-se em três períodos ou cursos: curso de Letras ou Humanidades, curso de Filosofia e Ciências, também denominado curso de Artes e o curso de Teologia ou Ciências Sagradas. Essa divisão básica deveria ser rigorosamente seguida por todos os colégios[4].
De acordo com a leitura que fizemos do plano de estudo, o curso de Letras ou Humanidades dividia-se em gramática, humanidades e retórica, tendo duração média de sete anos. A “Arte da gramática” do P. Manoel Alváres, dividido em três partes era o livro-base do curso e correspondia às divisões do estudo da gramática em inferior, média e superior.
Como a formação da eloqüência era muito importante para os jesuítas, o curso de gramática tinha o intuito de fazer o aluno saber expressar-se de forma clara e correta. Em três ou quatro anos de estudo os alunos já estavam preparados para o curso de humanidades.
O alvo desse segundo momento do curso, apoiado no currículo elaborado pelos jesuítas era formar o estilo na escrita, aperfeiçoando os estudos gramaticais e preparando a base da eloqüência e da poesia.
A classe de retórica ou eloqüência para utilizar um termo mais adequado ao que era ensinado nesta, pretendia formar o perfeito orador, com uma expressão enérgica e convincente. Nas aulas de retórica, como complemento, estudavam-se também história, geografia e cronologia. De modo geral, a classe de retórica abrangia, segundo as regras apresentadas pelo Ratio, três pontos principais: regras de oratória, estilo e erudição[5].
Para reger o estudo nesse curso, bem como para nos demais, o método jesuítico partia do princípio da educação através do estudo das línguas clássicas e de acordo com a oratória de Quintiliano[6]. No estudo das línguas clássicas viam esses educadores uma cultura que deveria ser conservada, como revela o próprio pensamento do momento histórico denominado Renascimento. No secundário, predominava o modo artístico de ensinar, já no universitário, o modo científico.
O curso de Filosofia, também denominado na época curso de Artes, tinha como ideal proporcionar à seus alunos uma formação científica da inteligência, o que podemos notar ao analisar atentamente as regras apresentadas no Ratio no tocante a este curso, que deveria durar três anos. Entretanto, era estritamente proibida a leitura ou mera citação de autores “infensos ao cristianismo”, o que nos faz crer que os professores tinham suas atividades dirigidas pelo plano de estudos, restando-lhes pouca ou nenhuma autonomia. As matérias que julgavam menos necessárias para a educação e desenvolvimento científico e moral eram totalmente excluídas. Aristóteles e São Tomás eram as leituras-base deste curso.
A Teologia, como não poderia deixar de ser, era a matéria que mais servia aos interesses da Ordem. Todas as outras disciplinas, a nosso ver, eram ensinadas para conduzirem ao estudo da Teologia. Para os jesuítas, o ensino jamais seria seguro e eficaz sem esta. O curso de Teologia dividia-se em Teologia Escolástica e Teologia Moral (casos de consciência), esta última destinada à formação de párocos ou administradores de sacramentos, durando todo o curso de quatro anos.
Todas as regras que ordenavam o andamento desses cursos buscavam, antes de tudo, o que consideravam como sendo a formação plena do homem, daí esse conjunto de regras ter sido muitas vezes classificado como humanista, a nosso ver, denominação plausível.
Como o objetivo inicial ao estabelecimento das instituições de ensino dos inacianos era a formação de seus membros, essa questão ocupou posição relevante no corpo do plano de estudos.
Em cada uma das partes de sua formação, o futuro jesuíta entregava-se ao estudo e à oração, sendo seu horário preenchido por ocupações religiosas e intelectuais. Para tornar-se o que eles denominavam “mestre-escola”, o interessado deveria entregar-se a uma rígida formação intelectual e moral, para as quais havia a orientação nas letras clássicas e na Filosofia. Principiava o magistério pelos níveis inferiores e evoluía de acordo com sua experiência e constante estudo.
Assim, podemos observar que o Ratio apresentava uma preocupação geral com a formação de todo o quadro que comporia as instituições a ele subordinadas. Reitera essa preocupação ao apontar que era de suma importância a existência de Academias ou Seminários pedagógicos destinados à formação de bons professores. Nessas academias, os futuros professores deveriam aprimorar seus conhecimentos, mantendo o mínimo contato com os alunos externos que não seguiriam a carreira.
No tocante à disciplina, o Ratio prescrevia que esta deveria estender-se a todos que faziam parte do corpo do colégio desde o Geral da Companhia até o alunado mais jovem. Os padrões disciplinares nesses colégios chegaram a ter, como era de se esperar em virtude da formação militar de Inácio de Loyola, características acentuadamente militares. Para manter a ordem, tão respeitada por esses religiosos, os alunos poderiam ser advertidos verbalmente e até fisicamente, em casos de extrema necessidade, pois este era o último recurso a ser utilizado, e com ressalvas. O mestre jamais agredia seu aluno, sendo reservada esta função ao corretor, que não poderia dar mais que seis golpes de palmatória.

Não seja precipitado no castigar, nem demasiado no inquerir; dissimule de preferência quando puder sem prejuizo de ninguém, não só não inflija nenhum castigo físico (este é o ofício do corretor) mas abstenha-se de qualquer injúria, por palavras ou atos. Não chame ninguém senão pelo nome ou cognome; por vezes é útil em lugar de castigo acrescentar algum trabalho literário além do exercício de cada dia[7].

A aula, de acordo com análise que fizemos do Ratio, poderia ter seus alunos divididos em dois campos, romanos e cartagineses, por exemplo, e em cada lado dispunham-se os alunos, de acordo com o merecimento, conforme a hierarquia militar. Dessa forma, dava-se o desafio que, conforme as regras do plano de estudo, deveria manter o aluno sempre atento para não ser rebaixado na hierarquia presente durante os desafios.
As competições faziam florescer um outro braço de apoio ao desenvolvimento intelectual dos alunos: as Academias. Estas, como bem frisa o Ratio nas Regras da Academia, eram “uma união de estudantes (distintos pelo talento e pela piedade), escolhidos entre todos os alunos, que, sob a presidência de um membro da Companhia, se congregavam para entregar-se a certos exercícios relacionados com os assuntos[8].”
Um fator que estimulava a disciplina dentro dos colégios era a preleção, uma espécie de lição prévia, que deveria estar presente em todas as classes prescritas pelo documento. Como era a apresentação do que seria estudado, esta servia principalmente para estimular a imaginação e não a memória, como nas outras etapas do aprendizado jesuítico. Prendia a atenção e mantinha a disciplina, cremos que porque despertavam a curiosidade do estudante e o faziam inquietar-se intelectualmente.
As competições, mais uma das marcas dos jesuítas, poderiam ser públicas ou apenas na presença de membros ilustres da ordem, semanais ou mensais, e tinham o intuito de estimular, através de um verdadeiro duelo intelectual, o aprendizado.

Considere o tempo, o modo e o lugar em que deverão reunir as aulas para os desafios entre si; não só prescreva com antecedência o método da discussão, mas ainda, durante o debate, procure com a sua segurança que tudo proceda com fruto, modéstia e serenidade. Do mesmo modo esteja presente as declamações ou preleções que os retóricos e humanistas costumam realizar no ginásio[9].

Segundo recomendações do Ratio, a avaliação deveria ser feita diariamente pelo mestre, onde este deveria observar o interesse, o engajamento e o desenvolvimento do aluno durante o andamento da aula. Os exames, de maneira geral, eram escritos podendo ser dois ou mais, de acordo com a necessidade de cada curso. A prescrição de como deveria ser feita a correção dos exames também aparece no plano.
O bedel ou ajudante auxiliava o mestre nas avaliações, pois falava sobre a aplicação e o desenvolvimento dos alunos, principalmente externos[10]. Ele tinha como função avisar o Superior se algum estudante não comparecesse às lições, repetições, disputas ou deixasse de cumprir algum dos deveres relativos ao estudo ou à disciplina[11] . O estudante deveria ser aprovado em uma dada etapa para poder prosseguir seus estudos. Dentre as regras que compunham o documento, havia as destinadas exclusivamente aos alunos externos. Essas prescreviam que mesmo esses alunos deveriam freqüentar as aulas de doutrina cristã, confessar e assistir à missa, além de proibir completamente a leitura de “livros pernicivos e inúteis” e a presença em espetáculos públicos[12]. Portanto, fica claro que mesmo não pretendendo tornar-se membro da Ordem o aluno deveria seguir uma vida cristã, correta e totalmente dedicada aos estudos.
Diante disso, podemos concluir que todas as movimentações dos colégios eram rigorosamente coordenadas pelo Ratio Studiorum, devendo ser seguido por todas as unidades da Companhia, para garantir a universalidade do trabalho dos mestres espalhados por todo o mundo.

O currículo adaptado à realidade brasileira nos séculos XVI e XVII

O Brasil se apresentava como uma realidade muito distante das que até então tinham sido campo de trabalho dos jesuítas dedicados ao trabalho educacional. Aqui catequese, fim último da Ordem, e educação deveriam andar atreladas, uma vez que instruir os indígenas de acordo com os preceitos divinos significava também dar-lhes um aparato educacional. Acreditava-se que sem a educação não seria possível o desenvolvimento da colônia, pois as crianças aqui nascidas, independente de serem fruto da miscigenação, precisavam ser educadas moral e intelectualmente.
Acreditamos que desde os primeiros momentos os membros da Companhia de Jesus perceberam que o trabalho no território brasileiro deveria se dar de outra maneira. Aqui as peculiaridades eram tantas, que simples adequações não seriam suficientes, era preciso inovar, porém sem perder de vista o fim último da vinda dos jesuítas, ou seja, a conversão dos pagãos a fé católica.
No Brasil, mestres como Manuel da Nóbrega, José de Anchieta e Antônio Vieira foram obrigados pelas circunstâncias a fazer concessões e a ceder em vários momentos de suas obras, além de defenderem perante seus superiores as vantagens que tais concessões poderiam trazer. Sabiam que deveriam ceder diante da ortodoxia.
O que primeiro pode ser caracterizado como uma concessão, e até mesmo como uma adequação à cultura nativa, é o esforço empreendido no sentido de aprender a língua, mesmo que esse tenha se dado de forma generalizada, como já falamos. Aprender a língua e traduzir orações e músicas católicas para esta “língua geral” tornou-se traço significativo do trabalho dos missionários. A elaboração de gramáticas fez com que os jesuítas incorporassem o aprendizado da língua às instituições educacionais da Ordem.
Os jesuítas buscaram aproximar as histórias narradas pelos índios das histórias da cristandade européia. Como aqui o aparato religioso era mínimo em relação ao encontrado em outros lugares, essa tentativa de aproximação das duas culturas apareceu como uma forte aliada da catequese. Identificaram alguns mitos nativos com essas histórias, aproximando as duas culturas.
As semelhanças encontradas e apropriadas foram a crença na imortalidade da alma, a oposição entre o bem e o mal e o medo que tinham de certas entidades tidas demoníacas, a veneração de Zomé, que os religiosos acreditavam ser São Tomé santidade que teria deixado marcas de sua passagem pela Bahia e histórias que falam de um dilúvio que foi associado ao dilúvio de Noé[13].
O padre Antônio Vieira também fala da noção que os nativos tinham e os jesuítas tentavam identificar com as histórias bíblicas que traziam em sua bagagem cultural.

Finalmente, Alapide acrescenta ao que os outros dizem que, segundo o testemunho de Trigáucio entre os chineses e o de Manuel da Nóbrega entre os índios, subsistem vestígios inequívocos da pregação apostólica feita por S. Tomé. Eu próprio sou testemunha ocular de que ainda subsistem, perto das praias da Baía pegadas, impressas num rochedo muito duro, dos dois pés de um homem, que uma tradição indígena constante diz serem do mesmo apóstolo, o qual percorrendo todo o oceano, se deslocou, sobre as águas, daquela costa para a Índia Oriental[14].

Essa busca de um passado cristão pode ser compreendida a partir do momento que reconhecemos que esta “pudesse amparar o esforço de conversão do gentio à religião cristã[15]”.
Porém, todos os esforços não surtiam os efeitos desejados, mesmo quando pareciam aceitar a fé católica. Os indígenas seguiam praticando seus antigos costumes, julgados altamente pecaminosos pelos jesuítas.
A alternativa encontrada foi ceder mais ainda, adaptando alguns ritos sacramentais da Igreja, tais como o batismo, a missa e o casamento, tolerar alguns costumes indígenas menos prejudiciais ao trabalho missional, além de curar certas doenças desconhecidas pelos pajés, passando por cima da autoridade deste e conquistando a confiança e a obediência de grupos inteiros.
Pregações na denominada “língua geral”, conhecimento da cultura nativa e busca de aproximação entre esta e a cultura européia, cura dos índios adoentados, tolerância e adaptação de ritos sacramentais, foram essas as principais inovações buscadas pelos jesuítas para auxiliarem na conversão dos indígenas. “Nóbrega e os missionários utilizavam-se, na verdade, além da língua, de ritos, nomes, referências e mitos próprios dos indígenas para alcançar seus objetivos[16].”
A educação aqui também teve que sofrer modificações, a educação escolar, aquela ministrada nos colégios e que foi retirada dos indígenas quando esses foram obrigados a viver nos aldeamentos, também não era totalmente idêntica à ministrada nos mais bem conceituados colégios da Europa.
A ocupação de um território que não apresentava nenhum apoio infra- estrutural já fazia com que a educação no Brasil tomasse rumos distintos. Aqui os primeiros jesuítas tiveram que colocar sua força de trabalho a serviço do ideal. Os padres precisavam empregar suas habilidades manuais na construção de suas casas e colégios, caso contrário não conseguiriam trabalhar nesse ambiente que logo se mostrou hostil aos desejos desses homens.
Para se livrarem do desgaste que seria causado pela dedicação que deveria ser dispensada para a construção e manutenção das unidades da Ordem, os jesuítas criaram um aparato financeiro, contrariando as normas gerais da Companhia que permitiam apenas a posse de terras para a construção de casas e colégios. Para prosseguirem seus trabalhos, os padres e irmãos tinham que fazer multiplicar as doações, nem sempre constantes da coroa lusitana.
Devido à escassez de recursos, os jesuítas da missão brasileira conseguiram junto ao Padre Geral e ao rei de Portugal exceção para adquirirem o pretendido, isto é, começaram a possuir fazendas com escravos negros, destinadas a sustentar os colégios, as casas e os aldeamentos indígenas. Os padres desejavam a autonomia financeira em relação ao monarca português[17].
Porém, devemos deixar claro que apesar de terem sido repreendidos por seus superiores, a economia jesuítica revertia-se unicamente para a catequese e os trabalhos educacionais, como sempre fizeram questão de deixar explícito em suas cartas. O jesuíta, religioso que era, não dispunha sozinho de nenhum bem. No Brasil, os bens pertenciam aos colégios, que possuíam coletivamente para o sustento dos alunos, padres e irmãos. As terras que eram doadas em regime de sesmaria, os jesuítas cultivavam ou então as arrendavam a particulares para utilizarem o dinheiro na construção das casas e colégios, para comprar os materiais necessários a estes estabelecimentos, para comprar escravos e para os gastos em geral.
Portanto, podemos verificar que os jesuítas foram obrigados a enquadrarem-se no sistema comercial vigente na colônia, principalmente porque nem sempre a fazenda régia repassava o que cabia à Ordem ou fazia o pagamento em espécie, que os padres eram obrigados a vender para conseguirem o suficiente à manutenção dos trabalhos. Muitas vezes o dinheiro mandado pela coroa ou a redízima, implantada a partir de 1564, não chegavam até à Ordem porque muitos funcionários públicos não concordavam com esse repasse e até cobravam impostos dos padres dos quais estes eram legalmente isentos.
O caráter inovador está presente nessa tentativa empreendedora dos jesuítas. No século XVI os inacianos realizavam suas missões e o ensino de acordo com a sua vida financeira, no entanto aqui no Brasil as dificuldades financeiras não deram uma marca comedida aos trabalhos da Companhia[18]. As observações das cartas jesuíticas, nos levaram a crer que as dificuldades financeiras muitas vezes atrasaram alguns passos do trabalho dos missionários, mas não os impediram. A dinâmica e a vontade que tinham sempre os fizeram caminhar sem perder o rumo que conduziria à realização dos objetivos estabelecidos.
Devemos também voltar nossa atenção a um outro nível de instrução que estava presente no trabalho dos padres e irmãos, mesmo que não declarado abertamente. As condições infra-estruturais do Brasil exigiam que houvesse uma formação mais técnica, voltada à construção e manutenção, daí a necessidade de formar vários profissionais. Para os jesuítas, instituir um modo de vida e de lidar com a natureza também deveria fazer parte do projeto civilizador que tinham para o Brasil. Acreditavam que impor subsídios materiais era fundamental para afastar os nativos de seus antigos hábitos. Perceberam que civilizar requeria algo mais que formação espiritual.
Os padres que missionavam no Brasil encontraram nas brechas oferecidas pelo Ratio Studiorum a oportunidade de trabalhar seguindo as evidentes necessidades locais. Os jesuítas introduziram o ensino profissional, pois para a construção das casas, igrejas, fazendas, colégios, aldeias e vilas era necessária mão-de-obra formada nos mais variados ofícios, visto que a sociedade colonial pedia profissionais. Os padres procuravam suprir o mercado, pedindo que viesse oficiais especializados do reino e paralelamente aprendiam eles próprios os diversos ofícios para ensinar aos colonos e índios. O aprendizado de cada ofício, pelo que podemos verificar, dava-se de modo informal e prático, durante a execução de uma obra ou no exercício do ofício. Os jesuítas aprendiam para ensinar e também para executar, colaborando com o progresso da colônia.

Em esta tierra, por falta que ay de officiales, la necesidad nos haze aprender todos los officios, porque yo os digo que, por los officios que en esta tierra tengo aprendido podria yo bivir, Chisto Nuestro Señor nos haga bien aprender y obrar el officio de la perfectión, para que nuestros trabajos y servicios le sean aceptos. Y para esto, hermanos míos en Chisto, nunca os olvídeis de tener continia memoria de nós en nuestros sacrifícios e oraciones[19].


Os padres passaram a orientar os índios na construção de suas casas e das igrejas, visto que suas edificações eram tidas como muito frágeis e primitivas. “Esta casa construíram-na os próprios índios para nosso uso, mas agora preparamo-nos para fazer outra um pouco maior[20].”
Além dos ofícios voltados para a construção e manutenção da colônia, muitas padres que vieram ao Brasil também exerciam funções médicas, principalmente quando queriam confrontar a autoridade dos pajés. É Anchieta quem fala sobre isso: “Juntamente servia de deitar emplasto, alevantar espinhelas e outros[21].” Serafim Leite em sua obra “Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil colonial (1549-1760)”, catalogou os padres da Companhia que conheciam ofícios diversos, oferecendo uma lista detalhada com nomes, datas de nascimento e morte e a origem. Cada ofício catalogado conta em média com dez ou mais oficiais.
Assim, podemos notar que os jesuítas se adequaram mais uma vez as necessidades primordiais da colônia, aprendendo e ensinando práticas profissionais que atendiam ao que o momento propunha, pois os membros da Companhia não se dedicavam aos trabalhos manuais. Nesse aspecto, a missão brasileira foi realmente inovadora, obrigou-os a seguir um ramo bem distinto do tradicional para conseguir o que desejavam. Nóbrega exemplifica a preocupação que os jesuítas tinham em ensinar os ofícios.

Mando enseñar algunos moços de la tierra para el sertón a ferreiros e a tecelões, y de allá deviam de mandar dos niños huerfanoas enseñados a officiaes para acá, porque esto hallamos ser en esta tierra una gran parte para la conversión de los infieles[22].

Retornando à educação oficial, ocorrida dentro das instituições dirigidas pelos jesuítas apoiados no Ratio Studiorum, temos a afirmar que também nesta encontramos peculiaridades e brechas, até mesmo após a promulgação definitiva do plano de estudos no final do século XVI, ou seja, passado meio século do trabalho dos jesuítas na colônia portuguesa.
Encontramos, nas cartas dos primeiros missionários, evidências que nos levaram a crer que eles sempre souberam que as diferenças do público exigiriam um desdobramento diferente dos trabalhos.
As duas primeiras adaptações educacionais, como já apontamos, foram a implantação do ensino elementar com classes de ler, escrever e contar e o ensino, aprendizado e execução de certos ofícios necessários ao momento histórico.
Porém, apesar dessas adaptações, outras duas merecem destaque, uma porque ocorreu primeiramente no Brasil e serviu de exemplo aos jesuítas que foram missionar em outras regiões, em especial na área do atual Paraguai, e a outra porque sofreu transformações necessárias, influenciando o desenvolvimento intelectual da colônia. Estamos falando dos aldeamentos e dos níveis educacionais que foram implantados nas casas e colégios dirigidos pelos inacianos no Brasil.
A política dos aldeamentos foi uma solução apresentada por volta de 1556 pelo chefe da missão brasileira, Manuel da Nóbrega, com o intuito de solucionar o problema da cristianização, que até então não tinha encontrado o êxito desejado. A nosso ver, antes mesmo dessa data o padre já pensava na união dos nativos em um espaço comum, como revela esta passagem de 1549 em carta ao padre Simão Rodrigues: “Alguns destes escravos me parece que seria bom juntal-os e tornal-os à sua terra e ficar lá um dos nossos para os ensinar porque por aqui se ordenaria grande entrada com todo este Gentio[23].” A segregação do gentio também atendia às diretrizes contidas no Regimento de Tomé de Sousa. Este documento deixa claro que os nativos não deveriam conviver no mesmo espaço que os demais colonos, deveriam ser isolados para garantir o total domínio da metrópole. O tipo de aldeia apresentado pelo regimento pode não ser o mesmo que depois se implantou, no entanto, em ambos se encontra como base a necessidade de sujeição do índio.

E assim ordenarei que nas ditas vilas e povoações se faça em um dia de cada semana, ou mais se vos parecerem necessário, feira a que os gentios possam vir vender o que tiverem e quiserem e comprar o que houverem mister, e assim ordenareis que os cristãos não vão as aldeias dos gentios a tratar com eles... (Regimento de Tomé de Sousa)

A reforma das missões foi basicamente apoiada em um projeto que Nóbrega e Anchieta implementaram em São Vicente durante o ano de 1553 e posteriormente em Piratininga. Os jesuítas não viajariam mais às tribos para trabalhar com os indígenas, como faziam até o momento, estes é que se deslocariam para um lugar escolhido pelos padres, onde os missionários empreenderiam seus esforços catequizadores. Foi a alternativa educacional encontrada para enfrentar a mobilidade de muitas tribos, os padres não queriam mais correr o risco de não encontrar algumas tribos, anteriormente visitadas e catequizadas. A partir de então, os indígenas seriam “convidados” a se mudarem para os novos povoamentos e o intuito do trabalho continuaria o mesmo, porém de forma mais ostensiva. “O missionário ‘saiu’ de sua sede anterior mas não saiu de sua cultura, apenas criou um espaço novo para ela, fazendo com que os demais espaços se remanejassem”[24] .
Para assegurar que os índios realmente seguiriam os jesuítas, estes eram acompanhados por soldados do governo colonial e os que resistissem estavam sujeitos às conseqüências da “guerra justa”, já prevista no regimento de Tomé de Sousa.
Diante dessa ameaça iminente, os nativos passaram a aceitar a mudança, a imposição cultural e a submissão aos padres pelo medo, medo de serem mortos e escravizados em conseqüência dos ataques da “guerra justa”. Os índios aceitaram a catequese não porque acreditavam, mas porque eram ameaçados. Nóbrega seguia S. Tomás que afirmava que Deus é a causa de todo o medo[25].
No “Diálogo sobre a conversão do gentio”, Nóbrega tenta mostrar que era preciso uma reforma do projeto missional que haviam empreendido até então. É uma tentativa clara de argumentar em prol da continuidade das missões religiosas no Novo Mundo. Apresenta a possibilidade de sucesso das missões a partir do esforço evangelizador dos padres que se deslocaram para esses novos locais de trabalho, rigorosamente escolhidos.

Parece-me por mais faceis, que fôssem a se converteram não se converteriam de maneira, que lhe dizeis, nem lh’o dizem os padres, e por isso estae-me attento, sabereis como o officio de converter almas é o maior de quantos há na terra, e por isso requer mais alto estado de perfeição que nenhum outro[26].


A partir do momento que os indígenas aceitassem viver nas aldeias organizadas pelos jesuítas, passariam a ter uma vida sedentária, longe da nudez, além de estarem sujeitos as mesmas leis que os demais colonos. Além de se submeterem a uma disciplina militar conviviam índios das mais diferentes raças, até mesmo inimigos dividiam o mesmo espaço. Os aldeamentos podem ser vistos como mais uma das estratégias de homogeneização. Nóbrega e seus seguidores acreditavam que essa nova tentativa civilizadora iria trazer todos os envolvidos na aventura colonial sob a mesma bandeira[27].
Após a implantação dos aldeamentos, os membros da Companhia se envolveram intensamente na administração desses novos espaços de catequese, acreditando ser a melhor solução para os indígenas, os colonos e os clérigos. Nessas localidades, os jesuítas poderiam catequizar os nativos mais rapidamente, isolando-os dos maus exemplos e exploração dos colonos, além de limitar o espaço físico que ocupariam, liberando áreas para a agricultura e a expansão das vilas e cidades, adequando-os às formas “civilizadas” de economia e convívio social. A disciplina também estava muito presente nos aldeamentos, não apenas para manter a ordem, como para ajudar na destruição dos antigos hábitos dos nativos, através da obediência sendo obrigados a seguir a rigidez imposta pelos padres[28].
O padre Antônio Vieira nos fornece um importante documento elaborado quando fora visitador nas missões do Maranhão. Nesse documento o jesuíta aborda uma série de informações sobre como deveria ser o funcionamento dos aldeamentos, desde como deveria ser a vida religiosa até a administração temporal dos índios.
Apesar do documento composto por Vieira datar do século XVII, ele nos apresenta como eram organizadas as aldeias, idealizadas a partir de 1553 que permaneceram no caminho pedagógico até a expulsão dos membros da Companhia de Jesus, já no século XVIII.
Dentro dos aldeamentos muitos foram os meios utilizados para a adequação dos índios aos padrões cristãos. Podemos afirmar que esses meios tinham conotação pedagógica, pois não deixavam de trabalhar para um fim educacional, a conversão do gentio e de sua adequação ao modo de vida tido como correto pelos jesuítas.
Segundo nossa análise, o primeiro artefato utilizado para auxiliar o trabalho nos aldeamentos foi a música. Nóbrega conhecia o efeito que esta tinha sobre o espírito e a atração que exercia sobre os índios[29]. Essa afirmação fica clara a partir da chegada dos órfãos vindos de Lisboa, da qual já tratamos em outro momento. Através da música conseguiram despertar a atenção e a simpatia dos nativos.

En esta Aldea uvo muchas fiestas donde los niõs cantaron y holgaron mucho y de noche se levantaron al modo de ellos y cantarón [...] Parézeme, según ellos son amigos de cosas músicas, que nossotros tanendo y cantando entre ellos los ganaríamos[30]”

Podemos notar nesta passagem dos meninos que chegaram de Lisboa em 1550, que os índios sentiam-se muito atraídos pela música, fato logo notado pelos membros da Companhia de Jesus. O ensino da música também passou a fazer parte dos colégios. Foi através dos meninos órfãos que os jesuítas introduziram a educação musical no Brasil.
Os jesuítas elaboraram um repertório de composições em estilo indígena, utilizando até mesmo os instrumentos dos nativos, cujas letras falavam do Deus cristão. Apesar das restrições impostas pelo Bispo D. Pedro Fernandes, os membros da Ordem fizeram bom uso da música como material de aculturação, principalmente dentro dos aldeamentos.
Além da música, os padres e irmãos buscaram um outro apoio para a conversão do gentio, encontrando no teatro um forte aliado para a conversão e moralização. Segundo Serafim Leite, o teatro foi introduzido primeiro pelos colonos, mas tinha uma conotação religiosa[31]. Os jesuítas deram continuidade ao trabalho dos colonos, levando os autos não apenas para as igrejas, mas também para os colégios e aldeamentos. Observamos que o teatro jesuítico dos séculos XVI e XVII não possuía apenas aspecto religioso, mas também objetivava uma formação moral e educacional.
Da mesma forma que a música, o teatro cumpriu, no Brasil colonial, um triplo papel: o de promover a educação e a evangelização, o de auxiliar a integração social entre o clero, colonos e indígenas, além de cumprir os seus próprios objetivos como arte e entretenimento.
O Ratio já previa a presença do teatro dentro dos colégios, porém de maneira comedida como podemos notar na passagem das Regras do Reitor.

Tragédias e Comédias- O assunto das tragédias e comédias que convem sejam raras e só em língua latina, deve ser sagrado e piedoso, nada deve haver nos entreatos que não seja em latim e conveniente; personagens e hábitos femininos são proibidos[32].

No Brasil, a função primordial do teatro foi, sem dúvida, pedagógica. Anchieta foi o principal criador dos autos, tendo como principal objetivo expandir a fé católica e moralizar os colonos e os indígenas, dessa forma, era composto tanto em tupi como em português.
Fazendo uma breve comparação entre o que acontecia no Brasil e o que era prescrito pelo Ratio com relação ao teatro, podemos identificar uma diferença significativa. Nas aldeias as peças não poderiam ser encenadas em latim, mas em tupi ou português, línguas acessíveis aos nativos e à população em geral. Anchieta e os demais padres tiveram, assim, que burlar a recomendação do plano de estudos para tornar possível as encenações e atingir seu objetivo de implantação da moral e da fé cristã e não de formação erudita, como prescreviam as regras do referido plano de estudos. Os jesuítas souberam lidar muito bem com as críticas feitas a estas adaptações, vindas principalmente do clero secular. Em suma, “cantos, música e danças foram nas Aldeias muito empregadas, sendo julgadas meio mais eficazes para prender a atenção da ‘indiada’.” [33].
Após essa análise de como a aculturação ou “cura das almas”, como diria Vieira, era realizada dentro dos aldeamentos e quais os recursos pedagógicos empregados para atingir esse fim, acreditamos que podemos tratar da educação institucionalizada, aquela que foi implantada nos colégios e tentava seguir as normatizações propostas pelo Ratio Studiorum.
Devemos fazer previamente uma distinção significativa, o subsídio dado pelo monarca aos colégios ultramarinos era a título de missão e não de ensino como ocorria no colégio de Coimbra, que era o padrão a ser seguido pelos colégios brasileiros. “No Brasil, o colégio não levava o ônus jurídico de ensino de todos indiscriminadamente, senão apenas o de formar sacerdotes para a catequese da nova terra.” [34].
No Brasil, os padres não puderam abrir de imediato todas as classes dos cursos previstos pelo Ratio, primeiro porque era necessária a instrução elementar dos alunos e esta estava sendo implantada. Segundo porque o número de alunos era reduzido. Assim, as classes conheceram no Brasil uma evolução desde a escola de ler e escrever até os mais altos níveis ministrados pela Companhia em suas unidades de ensino.
Por ser a sede da administração, colonial a Bahia teve o primeiro colégio jesuítico inaugurado em 1550. Este colégio já estava nos planos dos padres e irmãos que chegaram em 1549, visto que sem colégio o trabalho educacional institucionalizado não poderia se concretizar.
Acreditamos que a fundação efetiva desse colégio se deu apenas no ano seguinte à chegada dos jesuítas em virtude da vinda dos meninos órfãos de Lisboa. Estes aumentaram ainda mais a responsabilidade educacional e catequizadora, além de atraírem os pequenos nativos de uma forma extraordinária. A partir da chegada dessas crianças, além do colégio, Nóbrega criou uma confraria com o objetivo de conseguir esmolas para a manutenção dos mesmos, pois, como já observamos, as doações reais nem sempre eram constantes. Esse primeiro colégio, bem como os que foram fundados posteriormente, deveria seguir o modelo do colégio de Coimbra e ser guiado pelos princípios do Ratio, aceitando alunos internos e externos nas suas classes. Administrativamente as instituições de ensino se organizaram após a elevação do Brasil à província e a nomeação de Nóbrega como provincial. Assim, os colégios foram divididos em setores geográficos , passando o Rio de Janeiro a ser responsável pelas casas e colégios localizados na região sul, a Bahia deveria coordenar as unidades localizadas na parte central da colônia e Pernambuco as das regiões Norte e Nordeste. Até mesmo os aldeamentos criados posteriormente deveriam seguir essa divisão, obedecendo às ordens de sua respectiva região.
Logo após a fundação dos colégios nas regiões mais povoadas da colônia e a introdução do ensino elementar, foi implantado o ensino de Humanidades caracterizado pelo Ratio como elemento do ensino secundário. O curso era estruturado da mesma maneira que nas demais localidades. As leituras básicas constituíam-se de autores antigos cujas obras eram enviadas de Portugal, conforme as normas do plano de estudos.
O curso de Gramática conheceu as mesmas divisões e também teve a obra de Manuel Álvares “A Arte da Gramática”, como livro-base dos cursos ministrados nos colégios brasileiros.
Um mudança significativa do que era prescrito pelo Ratio Studiorum se deu no curso de Letras, principalmente no período inicial de sua implantação, pois o estudo do Tupi substituiu o do Grego. Essa substituição deve ser vista como mais uma das adaptações feitas pelos padres, visto que precisavam estudar a língua dos nativos para viabilizar a catequese. Mais uma vez as circunstâncias peculiares da terra fizeram os jesuítas modificarem as regras gerais para atingir seus objetivos.
No tocante ao estudo das “ciências sacras”, ou simplesmente Teologia, mais alto curso da Ordem, essa dividia-se em Teologia Escolástica e Teologia Moral. A Teologia Moral deveria ser estudada pelos que pretendiam lecionar, ou seja, tornar-se mestre da Ordem. Dentre ao alunos que se tornariam mestres uns se dedicariam ao ensino dentro dos colégios e outro trabalhariam na catequese, sendo para este último fundamental o conhecimento da “língua geral”.
Os jesuítas brasileiros, pelo que notamos, desejavam formar mestres nascidos na colônia, ampliando os quadros da Companhia com os homens que dispunham no próprio território. Assim provariam a eficiência de seu trabalho e não dependeriam dos mestres vindos da metrópole, pois faltavam portugueses que aceitassem tal encargo. Muitos jovens eram mandados para as universidades européias para depois lecionarem nos colégios brasileiros.
Na colônia ocorriam, mesmo diante de todas as peculiaridades, as disputas particulares e públicas, visto que estas eram traço marcante da Companhia. As competições aconteciam, como estava prescrito pelo Ratio, dentro das salas de aula e também fora delas em acontecimentos festivos que contavam com a presença de figuras ilustres da Ordem. Os alunos tinham que se prestar a disputas entre si nos dias de sábado, as chamadas “sabatinas”, também estas indicadas pelo plano de estudos. Durante essas disputas os alunos eram avaliados, pois a extensão das aulas não concedia tempo para a realização da avaliação do desempenho escolar durante a semana. Muitas vezes os alunos nem percebiam que estavam sendo avaliados[35].
Para o ultramar também foi transferida toda a hierarquia administrativa e docente dos colégios que era prescrita pelo Ratio Studiorum. Essa hierarquia era supervisionada pelos padres visitadores enviados da Europa pelo padre Geral da Companhia. Segundo Serafim Leite, algumas soluções foram apresentadas pelos padres visitadores, de acordo com a necessidade e limitações da colônia e, até possibilitaram, alterações significativas no quadro escolar brasileiro, como a diminuição do número necessário de alunos para o funcionamento dos cursos, isso fez com que houvesse uma continuidade dos alunos nos estudos, pois as classes não foram mais interrompidas devido ao reduzido número de alunos[36].
Apesar das modificações que foram necessárias, o ensino, tanto o ministrado nas casas e colégios, quanto o ministrado nas aldeias e de maneira informal nas diversas áreas nas quais os jesuítas marcaram presença, conheceu no Brasil campo bastante frutífero, principalmente em virtude da necessidade iminente da catequização dos indígenas.
Outros cursos foram implantados com grande sucesso no Brasil. O que conheceu maior prosperidade foi o curso de Artes ou Filosofia do colégio da Bahia. O referido colégio funcionava como uma verdadeira universidade, com os cursos de Teologia, Matemática, além do curso de Filosofia. Dado ao sucesso e bons resultados conquistados nessa unidade, os membros da Câmara de Salvador tentaram, na segunda metade do século XVII, legitimar os cursos e elevar o colégio à categoria de Universidade.
Os brasileiros tentavam com essa iniciativa provar que a educação ministrada na colônia já possuía autonomia e qualidade suficientes para garantir a formação completa de seus alunos e futuros mestres. Acreditamos que os membros da congregação da Universidade de Coimbra se recusaram a aceitar o pedido dos brasileiros devido ao número reduzido de alunos em toda a colônia, se compararmos com as demais unidades de ensino da Ordem.
Portanto, podemos concluir que o modelo educacional que os jesuítas trouxeram para a colônia evoluiu da catequese e atingiu os níveis mais altos previstos no rigoroso plano de estudo. Exceções foram toleradas pois todas as adaptações e inovações adotadas pelos padres e irmãos tinham o objetivo de catequizar os nativos e adequá-los à sociedade européia.
Apesar do fracasso de algumas iniciativas dos jesuítas, principalmente na catequese, as modificações e inovações e aqui permitidas revelam que o Ratio Studiorum era maleável, desde que as alterações não prejudicassem o andamento da obra dos missionários jesuítas.

Considerações Finais

A Companhia de Jesus surgiu para atender às necessidades da Igreja Católica no momento em que esta precisava reagir contra as forças do movimento protestante. A Idade Moderna exigia uma transformação espiritual e a Igreja Católica não podia perder sua hegemonia.
No contexto histórico em que nasceu, a Companhia não auxiliou a Igreja Católica apenas nos limites do território europeu. O Novo Mundo necessitava conhecer o evangelho e ser campo de batalha contra o protestantismo. Dessa forma, a Ordem foi escolhida para atuar na transformação dos “bárbaros” habitantes destas novas localidades e preservar o catolicismo. Fora eleita para adequar o Novo Mundo à “civilização européia”.
Apesar dos impactos iniciais, os jesuítas encarregados da missão brasileira logo iniciaram, cheios de otimismo, o trabalho com os nativos e também com os colonos, que não viviam em harmonia com a moral pregada pelos padres e irmãos.
As primeiras tentativas de conversão deram-se a partir da pregação e do batismo em massa, porém, estas fracassaram em virtude da efemeridade da crença dos nativos, que logo retornavam aos seus antigos costumes. Entretanto, os jesuítas, confiantes que eram, não tardaram em buscar soluções mais eficazes para a concretização de seus ideais. Tais soluções foram a educação e a catequese mais direta dos meninos índios e, a mais drástica e destrutiva delas, a criação dos aldeamentos, dentro dos quais os indígenas viveriam sob uma nova organização, dirigidos pelos padres e educados para se adequarem às “regras” da colônia.
Dentro deste espaço arquitetado pelos padres e irmãos, meios pedagógicos, como a música e o teatro, foram buscados para atingir os objetivos da Igreja e do estado português.
Concluímos que a experiência brasileira, mesmo que não esteja explícita nas correspondências, contribuiu para a redação final do Ratio Studiorum. As observações contidas nas cartas despertaram a atenção dos membros da comissão encarregada de elaborar as regras que deveriam reorientar parte do trabalho pedagógico dos jesuítas.
Assim, as modificações e as inovações pensadas foram concretizadas no intuito de formar o cristão tendo em vista as necessidades dos novos tempos. Pensar a sociedade colonial sem uma compreensão do trabalho dos missionários da Companhia de Jesus e consequentemente sua atuação pedagógica é ver apenas parte de um complexo universo da História do Brasil.


[1] FRANCA, L. O Método Pedagógico Jesuítico. O “Ratio Studiorium”: Introdução e Tradução. Rio de Janeiro: Agir, 1952, p.15
[2] MADUREIRA, J.M. A liberdade do índios. A Companhia de Jesus, sua pedagogia e seus resultados. São Paulo: [s.n.], 1929, p. 395.
[3] FRANCA, L. Op. Cit., p. 133.
[4] MADUREIRA, J.M. Op. Cit., p, 397.
[5] FRANCA, L. Op. Cit., p.192.
[6] MADUREIRA, J. M. Op. Cit., p. 401
[7] FRANCA, L. Op. Cit., p. 190
[8] Idem, p. 222.
[9] Idem, p. 173
[10] Idem, p. 220.
[11] Idem, p. 219.
[12] Idem, p. 221
[13] NÓBREGA, M.da. Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: [s.n.], 1955, p. 49
[14] VIEIRA, A Claves Prophetarum. Chave dos profetas. Livro III. Edição crítica de Arnaldo do Espírito Santo. Lisboa: Biblioteca nacional, 2000, p. 177-179.
[15] HOLANDA, S.B.de. Visão do Paraíso. São Paulo:Brasiliense, 2000, p. 139.
[16] PUNTONI, P. A guerra do bárbaros. Povos indígenas e colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Edusp, 2002, p. 64.
[17] LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1938-1949, t 1, p. 107-109.
[18] Idem, p. 124-127.
[19] LEITE, S. (org).Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo, 1954, v1, p. 264.
[20] Idem, v 2, p. 101.
[21] Idem, p. 156.
[22] Idem, v 1, p. 403
[23] NOBREGA, M. Cartas do Brasil e Mais Escritos: 1549-1560. São Paulo: Edusp, 1988, p. 32.
[24] NEVES, L.F.B. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 1978, p. 44.
[25] EISEMBERG, J. As Missões Jesuíticas e o Pensamento político Moderno: encontros Culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 107.
[26] NÓBREGA, M. Cartas do Brasil e mais escritos. Op. Cit., p. 242.
[27] EISEMBERG, J. Op. Cit. , p. 115
[28] PAIVA, J. M.de. Colonização e Catequese. São Paulo: Cortez, 1982, p. 93.
[29] LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil.Op. Cit., t2, p. 29.
[30] LEITE, S. (org).Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Op. Cit., v1, p. 383.
[31] LEITE, S. História da Companhia....Op.Cit., t 2, p.599.
[32] FRANCA, L. Op. Cit., p. 155.
[33] NEVES, L. F. B. OP. Cit., p. 14.
[34] LEITE, S. História da Companhia...Op. Cit., t 7, p. 141.
[35] Idem, t 1, p. 71-75.
[36] Idem, p. 76.

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